Com o crescente avanço da tecnologia de registro distribuído, especialmente por meio do Bitcoin, muitos debates têm surgido sobre como essas novas inovações impactam os conceitos tradicionais do direito. Entre as questões mais discutidas está a compreensão da natureza jurídica do Bitcoin e a confusão entre a capacidade técnica de controlar criptoativos e a titularidade jurídica de bens. Nesse contexto, é importante entender que o Bitcoin não é um simples bem incorpóreo, e sua existência e controle técnico não se traduzem em propriedade no sentido tradicional do direito real. Este artigo busca esclarecer essa distinção crucial, argumentando que o simples conhecimento de uma chave privada não pode ser considerado um título jurídico de propriedade.
Em termos práticos, o controle sobre um criptoativo como o Bitcoin é obtido por meio da posse de uma chave privada, que permite aos usuários movimentar os fundos associados àquela chave. Contudo, esse controle técnico não deve ser confundido com a titularidade jurídica. O Bitcoin, como um ativo digital descentralizado, não segue as normas tradicionais dos direitos reais, que são regidas por princípios institucionais e jurídicos claros. O direito à propriedade, no modelo convencional, envolve a capacidade de exercer direitos sobre um bem com respaldo legal, enquanto no Bitcoin, o que se tem é uma capacidade de movimentação de transações em um sistema criptográfico sem a interferência direta do direito estatal ou das normativas jurídicas tradicionais.
A ideia de que o Bitcoin e outros criptoativos podem ser considerados bens de forma análoga a bens tangíveis, como imóveis ou objetos, carece de uma base sólida no direito. Ao contrário do que muitos acreditam, o simples fato de um indivíduo controlar a chave privada de uma carteira Bitcoin não implica que ele seja, de fato, o proprietário jurídico do ativo. Essa confusão entre controle técnico e titularidade jurídica gera um equívoco, pois a propriedade, no entendimento jurídico, envolve a formalização de um título de domínio reconhecido e respaldado pela legislação vigente, algo que o Bitcoin não possui.
A titularidade de bens digitais no contexto das criptomoedas é um campo ainda em construção dentro do direito. Enquanto a tecnologia de blockchain, que sustenta o Bitcoin, permite o registro imutável de transações, ela não concede a quem controla uma chave privada os direitos legais típicos da posse. A confusão entre essas duas esferas – a técnica e a jurídica – pode levar a uma falsa compreensão sobre a verdadeira natureza do Bitcoin. Em outras palavras, a capacidade de movimentar e gerar novos outputs a partir de uma chave privada não confere, por si só, a posse jurídica desses ativos.
A discussão sobre a titularidade jurídica dos criptoativos também passa pela análise da relação entre o sistema descentralizado do Bitcoin e os mecanismos legais de mercado. O Bitcoin opera em uma rede de consenso distribuído, onde as transações são validadas pela rede de mineradores, e não por autoridades legais ou judiciais. Esse modelo descentralizado desafia as estruturas tradicionais de posse e jurisdição, criando uma separação clara entre o controle técnico do ativo e a titularidade jurídica que reconhece um direito formal sobre o bem. Portanto, é fundamental distinguir entre o uso da chave privada, que apenas permite realizar transações, e a posse legítima reconhecida pelo ordenamento jurídico.
No plano teórico, é possível argumentar que a concepção de propriedade no contexto do Bitcoin poderia ser adaptada para incorporar aspectos da criptoeconomia. No entanto, tal adaptação exigiria uma profunda revisão das normas legais, que atualmente são estruturadas com base em conceitos mais antigos e em bens físicos. A transição para um sistema onde o controle de chaves privadas se tornaria um título de propriedade legítimo no âmbito jurídico implicaria mudanças significativas nas definições de bens, direitos e contratos, o que ainda está longe de ser uma realidade.
Além disso, a noção de propriedade no Bitcoin não pode ser dissociada das implicações sociais e econômicas que ela traz consigo. O simples controle técnico de uma chave privada não confere aos indivíduos os direitos que tradicionalmente são associados à propriedade de bens, como a possibilidade de transferir, vender ou herdar de acordo com a legislação vigente. A confusão entre esses dois planos de realidade – o técnico e o jurídico – pode prejudicar a compreensão adequada do papel do Bitcoin na economia moderna e sua integração com os sistemas jurídicos convencionais.
Por fim, é importante destacar que a regulação do Bitcoin e de outros criptoativos está em constante evolução. À medida que a sociedade continua a se adaptar à nova era digital, a necessidade de desenvolver uma framework jurídica capaz de lidar com as complexidades desses ativos virtuais se torna cada vez mais urgente. Contudo, até que essa adaptação seja concluída, é imperativo que se compreenda que o Bitcoin não é um bem incorpóreo no sentido jurídico tradicional e que seu controle técnico, por meio de chaves privadas, não confere aos usuários os mesmos direitos que a posse de um bem material.
Autor: Anton Smirnov