Ocultos em meio ao hype de ilustrações de macacos, memes e bilionários excêntricos, uma série de implicações passam despercebidas pelos usuários
Neymar, Justin Bieber, Eminem, Snoop Dog. O que essas celebridades têm em comum? Todas elas investiram ou criaram seus próprios NFTs (token não fungível, na tradução do inglês).
No auge da popularidade, o fenômeno não está restrito a figuras públicas. Dados da Dune Analytics indicam que, só nas duas primeiras semanas do ano, o OpenSea –maior marketplace de NFTs do mercado—ultrapassou US$ 3,5 bilhões em transações.
Ocultos em meio ao hype de ilustrações de macacos, memes e bilionários excêntricos, implicações ambientais, econômicas e jurídicas acabam passando despercebidas pelos usuários.
Mineração: a mãe de muitos problemas
A discussão sobre a mineração de criptomoedas e os impactos ambientais causados já é antiga.
Ela se acentua quando o foco são os NFTs por causa de uma característica específica do mercado: a esmagadora maioria deles está no blockchain Ethereum.
Apesar de ser tópico de debate há algum tempo, a correlação entre Ethereum, mineração e aquecimento global não é, para dizer o mínimo, intuitiva.
Basicamente, existem alguns sistemas nos quais uma blockchain pode escolher operar. O escolhido pela Ethereum é o chamado “Proof of Work”, ou PoW (prova de trabalho, em inglês).
No PoW, para minerar determinado bloco, os computadores ficam competindo entre si para encontrar a resposta a um enigma criptográfico. Fundamentalmente, para encontrar a resposta certa, é preciso participar de um jogo de adivinhações.
Meio complicado, certo? Essa é justamente a intenção do sistema.
Alexander de Vries, fundador do Digiconomist –plataforma dedicada a expor consequências não intencionais de tendências digitais– explica que os profissionais recebem cerca de 2 ether a cada bloco minerado (cerca de R$ 31 mil, na cotação atual).
Fica mais fácil entender por que um trabalho tão lucrativo não pode estar à mercê de uma mera partida de Wordle, por exemplo.
Entendido o sistema, fica mais fácil transpor a relação. Quanto mais rápido e mais eficiente for o trabalho do minerador, mais retorno financeiro ele recebe. Com esse retorno, ele compra mais máquinas, ganha mais dinheiro… e assim o ciclo perdura.
Por demandar cada vez mais força computacional, o sistema precisa de quantidades enormes de energia, que vêm, em sua grande maioria, de combustíveis fósseis.
Bingo: aquecimento global.
Portanto, o aumento dos NFTs acaba indo contra toda a discussão global sobre emissões de gases e uso renovável de energia.
Proof of Work x Proof of Stake
Programada para esse ano, uma atualização do sistema para o Proof of Stake (prova de participação, na tradução do inglês), ou PoS, já começou na Ethereum. Defendido pelo próprio criador da rede, Vitalik Buterin, esse sistema utiliza de maneira muito mais eficiente a energia, e já é utilizado por outras redes, como a Cardano, por exemplo.
Mesmo com a evidente vantagem ambiental, não é certo que a comunidade aceite a atualização.
Além dos mineradores perderem sua fonte de renda –-no PoS, o valor do ativo é definido dentro da rede, pelos usuários; não fora dele, por computadores e energia— a atualização atual é considerada mais segura, por depender de um mecanismo tão complexo para validação de informações.
Caso o choque de opiniões na comunidade seja irreparável, a rede corre o risco de se dividir. Isso causaria uma situação ainda mais complicada para os NFTs: eles também serão divididos, e os usuários terão 2 tokens, um em cada rede.
Claro, existem alternativas: não é preciso que esses NFTs sejam criados na Ethereum. Outras redes que utilizam de sistemas como o PoS podem ser opções mais sustentáveis aos ávidos colecionadores de NFTs.
Mas, enquanto esse mercado cresce exponencialmente e novos usuários ficam fascinados pelo mecanismo, as questões ambientais, por ora, foram jogadas para escanteio.
Para além do aquecimento global, o mercado dos NFTs também pode contribuir com outros impactos, como mostra Alexander a seguir:
Escassez de chips
De acordo com o especialista, quando há um aumento no preço das criptomoedas, a demanda por equipamento também sobe.
Além disso, esses equipamentos não são como o computador que você tem em casa—eles têm uma validade de cerca de 18 meses.
A escassez de chips é uma realidade no mundo todo, e afeta também este mercado. Quando essa demanda aumenta, outros setores como o automobilístico, por exemplo, sofrem as consequências.
Lixo eletrônico
De Vries aponta que, atualmente, os equipamentos que estão sendo comprados com o intuito de minerar estão cada vez mais especializados.
Antes mais funcionais, eles podem servir até para uma criptomoeda ou sistema específico. Ele aponta que, ano passado, a Nvidia, empresa multinacional de tecnologia, anunciou que lançaria uma ferramenta específica para a mineração na Ethereum.
Somado ao curto tempo de vida, existe a possibilidade de um significativo aumento no lixo eletrônico nos próximos anos.
Cada transação de Bitcoin realizada equivale a 150g de lixo eletrônico—ou seja, meio Ipad.
Apagões de energia
“Todos os mineradores buscam as mesmas coisas: energia barata e relativamente estável para operar. O que tende a levá-los aos mesmos locais”, diz De Vries.
“Muitos desses locais não têm a capacidade para lidar com essa demanda. A consequência são os apagões de energia.”
Com a demanda cada vez mais nichada, países como Irã, Geórgia, Cazaquistão, Kosovo, Islândia — até o estado do Texas, nos EUA, correm o risco de terem apagões de energia generalizados.
Essa situação piorou categoricamente depois que a China proibiu a mineração de Bitcoin e outras criptomoedas, em setembro do ano passado.
Terra sem lei
O universo cripto é descentralizado. Ele foi criado com esse propósito, deliberadamente excluindo qualquer intermediário das transações.
Os sistemas de criptomoedas estão em constante evolução e mudança, justamente para que não haja necessidade de terceiros em nenhum caso. Mas essas tecnologias ainda estão sendo aprimoradas, e erros inevitavelmente acontecem: gerando complicações jurídicas.
Primeiro, comprar um NFT não te concede automaticamente a propriedade de uma obra original. Pensando em direitos autorais, ele é apenas um certificado digital, um recibo que indica que você possui uma versão do trabalho.
Da mesma forma que, ao comprar um exemplar autografado de Senhor dos Anéis, você não ganha o direito de publicar um PDF da obra em seu Twitter, você também não ganha, necessariamente, o direito de compartilhamento quando compra um NFT.
“Como regra geral, possuir um NFT é diferente de possuir os direitos sobre os ativos que os compõe. Ou seja, ao adquirir um NFT, não significa que você necessariamente tenha direitos ilimitados sobre os ativos inseridos nele, e nem que você é titular da propriedade intelectual daquele ativo”, explica Stephanie Consonni, advogada especializada em propriedade intelectual.
“É comum existir limitações e restrições de uso de um NFT pelo seu titular.”
A partir dessa reflexão, a advogada já aponta uma série de questionamentos: como controlar a cópia não autorizada de um NFT? Como garantir a legitimidade de um NFT? Como proteger os interesses daqueles que estão adquirindo NFTs e ferramentas disponíveis para aqueles que se sentirem lesados? Não existem respostas concretas para todas essas perguntas.
Ainda há a questão das fraudes. Por exemplo, a plataforma OpenSea, o maior mercado NFT, anunciou no final de janeiro de 2022 que ao menos 80% dos tokens criados em sua ferramenta gratuita são fraudes, golpes ou spam.
Então, o que fazer? Como um artista pode utilizar recursos legais para se proteger, ou derrubar um NFT de sua arte que não foi feito por ele? E o que um comprador pode fazer ao descobrir que a obra que adquiriu, na verdade, não é a original?
Para Stephanie, ainda há um grande desafio em casos como estes, especialmente considerando que não temos ainda muitas disputas e discussões judiciais neste sentido.
“Vale destacar que não é possível copiar o token em si, o que nos leva principalmente às questões envolvendo violações de direitos autorais. Nestes casos, é necessário verificar se existem disposições específicas nos termos de uso das plataformas de compra/venda de NFTs e nos smart contracts que podem estar atrelados aos NFTs, de modo a verificar quais são os meios de solução possíveis, tanto para o comprador quanto para o autor”, diz.
“Se nestes mecanismos não estiverem previstas ferramentas para estes casos de disputas, é possível recorrer à justiça. O nosso desafio neste ponto é aguardar para ver como os tribunais irão julgar estes casos, pois o tema se mostra como de alta complexidade.”
E não para por aí. A advogada acredita que a discussão ainda precisa avançar, e vê muitas frentes que precisam ser alvo de discussão. Ela cita a tributação de ativos digitais, que ainda não está clara ao redor do mundo, e a discussão à luz do direito penal, em relação aos altos valores envolvidos nesse tipo de transação e, por vezes, a utilização desses tokens para fins ilícitos, como lavagem de dinheiro.
Regulação pode avançar
Apesar disso, não é possível dizer que essas questões passaram despercebidas por reguladores, governos e instituições.
Consonni cita a União Europeia, por exemplo, onde já existem algumas propostas de regulamentação de ativos digitais. Nos Estados Unidos, o presidente norte-americano, Joe Biden, tem pressionado cada vez mais pela regulamentação das criptomoedas, incluindo NFTs.
“As discussões sobre a regulamentação dos NFTs estão cada vez mais ativas e avançando, inclusive no Brasil. É inegável que quem está inserido no universo dos NFTs deve se preparar para um mercado cada vez mais regulamentado”, explica a advogada.
“Conforme a relevância e importância que os NFTs vão adquirindo, não vejo como fugir desta regulamentação, ainda que em certo nível comprometa a descentralização.”
Volatilidade e liquidez
Os lucros do mercado financeiro se baseiam numa expectativa de valorização futura. As ações possuem um lastro no mundo real: nos resultados de empresas, qualidade dos serviços, movimentações internacionais.
Os NFTs não chegam a esse patamar. O professor Glauco Truzzi, coordenador do Centro de Inteligência Artificial da USP e especialista em sociologia econômica, cita o artista americano Beeple como exemplo.
Uma obra digital do artista foi vendida por US$ 69,3 milhões durante um leilão da Christie’s em março de 2021, quebrando recordes no mundo das artes.
“Ao comprar o quadro, você não tem o bem físico, e sim o bem digital. Se o Beeple sair da moda, esse bem desaba instantaneamente. Portanto, o grau de volatilidade do NFT é muito grande: a característica básica dele é ser um bem volátil”, explica o professor.
Claro, a volatilidade não é característica única destes tokens, mas do mercado de criptomoedas como um todo. Contudo, ao comprar um bitcoin, por exemplo, ele pode ser utilizado para outras finalidades, como a compra e uso de bens, serviços e até a troca por outras moedas (sejam elas digitais ou não).
Com esses tokens, sua finalidade acaba em si. Não é possível utilizá-los para nenhuma finalidade, tampouco vendê-los facilmente.
Isso porque não é certo que se encontrará um comprador imediatamente. Neste aspecto, o mercado se assemelha mais ao mundo da arte do que das criptomoedas: estes ativos apresentam uma baixa liquidez.
“Os caminhos não estão traçados, nem do ponto de vista financeiro”, diz Glauco.
Apesar de todas as questões, o professor acredita que os tokens têm grande potencial. “Eu acredito que tem potencial (de esse mercado) avançar e dar certo. Para isso acontecer, os NFTs precisam desenvolver certa musculatura para resolver esses problemas”, pondera.
CNN Soft Business
Para saber mais sobre NFTs e como funcionam as negociações digitais envolvendo essa nova tecnologia, assista ao CNN Soft Business desta quinta-feira (17), que vai ao ar às 22h30.